Antes que vocês digam que este guri estava apenas de brincadeira eu garanto à vocês que esse ele estava apenas reproduzindo muito bem o peso e valor que as pessoas aqui nesta cultura dão à sua privacidade. Quando comecei a ensinar aqui eu ficava irritada e confusa depois de cada aula. Eu simplesmente não entendia porque a mesma estrutura de aula que fazia o maior sucesso no Brasil era um grande fracasso aqui. Em Salvador, era raro ter uma turma que não se empolgasse com atividades que os fizessem levantar, andar pela sala falando uns com os outros e falando de si mesmos. Aqui, para essas atividades funcionarem, é necessário uma longa preparação. Já percebi que essas atividades funcionam muito bem depois de muitas atividades para se conhecer e criar um certo clima de intimidade no grupo. Além disso, se você e a turma ainda não se conhecem muito bem, sempre ajuda se você deixar bem claro no início de uma atividade dessas, que você não está nem aí pra vida pessoal deles e que eles devem inventar respostas se quiserem.
Comecei a dar essa instrução antes de cada atividade que tivesse pergunta pessoal, de qualquer tipo. Comecei também a dar informações sobre mim mesma que eram obviamente inventadas, só pra estabelecer um exemplo. Tipo, em uma aula eu dizia que tinha nascido aqui, em outra que tinha nascido no Brasil e por aí vai. De repente, um ou outro começa a se interessar e de fato querer saber. Cris, falando sério agora: você nasceu onde mesmo? Quando essa pergunta surge, na qual eles de fato querem saber alguma coisa pessoal sua, você sabe que o grupo atingiu aquele nível de abertura necessário pra atividades comunicativas darem certo, ou o mesmo nível do segundo dia de aula no Brasil.
Um outro aspecto importante é assegurar às pessoas que a privacidade deles está protegida com você. Eu gosto de fazer uma lista de contato nas minhas turmas para que, caso aconteça alguma emergência, a gente possa entrar em contato um com os outros facilmente. Antes de oferecem seus dados, os alunos sempre gostam de ouvir que eu não vou passar a lista pra mais ninguém e que ao invés de jogar aquele papel no lixo, que eu o jogarei no picotador de papel. É um monte de detalhe, pra quem vem de uma cultura onde basicamente ninguém tá nem aí com essa coisa, mas vale à pena passar por isso pra que no final das contas o ambiente de sala de aula seja relaxado e para evitar que os alunos achem que você é um interrogador e que eles estão de volta aos tempos da Alemanha dividida.
Isso é um caso sério mesmo. Por questões históricas esse povo tem trauma de ser seguido, observado, interrogado. A Alemanha já viveu vários momentos em que privacidade não era um direito e sim apenas um conceito distante e por isso hoje, que de fato é possível, ter privacidade, eles à protegem com unhas e dentes nas menores coisas. Por exemplo, ninguém te pergunta qual a sua religião, pra quem você votou, se você é casado ou solteiro, se tem filho. Pouca gente se exaspera quando descobre que você não tem celular ou quando te liga e ele está desligado. Se você liga pro trabalho e diz que está doente e não pode ir trabalhar, ninguém fica te perguntando o que você tem, você conta se quiser. Inclusive determinadas perguntas no ambiente de trabalho podem até gerar processos de invasão de privacidade. A precaução com a privacidade no terreno virtual também beira a paranóia e sempre me intrigou, já que a Alemanha é campeã em produção e exportação de tecnologia que ela mesma é cautelosa ao usar.
Para resumir a conversa, tem um velho ditado que diz: "Quando em Roma faça como os Romanos". Já que estou na Alemanha, aprendi a ser mais cautelosa e cuidar mais da minha privacidade. Acho que encontrei o caminho do meio entre a super exposição brasileira e a super paranóia alemã. E o ideal pra grande parte das coisas desse mundo não é mesmo poder apreciar de tudo com moderação?
Gata, vc realmente consegue tirar flor do meio das pedras e fazer poesia! Fantástico! Sabe q lendo a sua estória eu pensei q prof tem mesmo q ter jogo de cintura e criatividade, ainda bem q eu saí do time, n sei s lidaria tão bem com tudo q vc vem enfrentando aí. bjão
ResponderExcluirBom ter notícias suas e saber que você está feliz. Como anda a família aqui no Brasil e o maridão? Sempre bom tomar conhecimento desses detalhes culturais, pois aumenta o reconhecimento da nossa identidade. Você cada dia que passa escreve muito melhor. Tá massa seu texto. Vamos manter mais contato, flw? Bjao.
ResponderExcluiragradeço pelas informaçoes culturais e fico feliz por voce ter aprendido a lidar com a situaçao. Seu texto me leva a varios outros aspectos da sala de aula, do ambiente cultual, de expectativas etc. Só num bate papo em que a flutuação rola sem problema - pra lá e pra cá e pra outro lugar e depois pra cá de novo e tal. Abraços
ResponderExcluirfoi Uenderson e nao Silvinha, Cris.
ResponderExcluirAdorei Cris!
ResponderExcluirBjao
Como sempre excelente texto e narrativa. É engraçado que eu realmente nunca me imaginei dando aula para um grupo que não goste de levantar e interagir com os colegas. É exatamente por causa dessa interação que eu sou apaixonado por sala de aula, pelo fato de que conhecemos centenas de pessoas diferentes a cada novo semestre, aprendemos com elas e ampliamos nossa mente.
ResponderExcluirAchei fantástica a forma como você lidou com o assunto. Eu sempre falo a meus alunos também que eles devem inventar respostas, mas talvez por razões diferentes das suas. O que eu percebo é que algumas vezes os alunos daqui tendem a demorar muito pra pensar em uma resposta para uma pergunta simples. Por quê? Invente sua zorra, responda sua pergunta, pratique seu inglês e aprenda!
A respeito da privacidade em demasia ou não, eu li na semana passada um professor dizendo que para tudo na sua vida deve haver um balanço e em sala de aula não se pode ser diferente.
Beijão,
Dudu
"ou o mesmo nível do segundo dia de aula no Brasil" = morri de rir!!! Bjs!!
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