Toda
vez que eu venho ao Brasil acabo ficando mais ativa nas redes
sociais. Meus poucos amigos alemães
que utilizam Facebook, vivem reclamando que eu só posto em português
e eles não podem acompanhar
nada. Mas eu tenho uma explicação:
meus amigos brasileiros são mais ativos nas redes sociais,
compartilham mais, comentam mais, curtem mais. Olhar o Facebook acaba
sendo uma experiência massa, como um grande bate-papo com a galera.
Ao
ficar mais ativa no Face (já peguei até intimidade, tá vendo?),
comecei a perceber os tantos outros usos legais desse meio que não
só brincar e ficar trocando bobagens com os amigos. Comecei a fazer
parte de comunidades e grupos de discussão e com isso ler mais,
conhecer mais, estudar mais. E não foi só isso. Quando perdi a
timidez nas redes sociais e passei a comentar também, voltei a
exercitar a habilidade de debater e de argumentar. Como se isso já
não fosse muito bom, conheci muita gente bacana que hoje me arrisco
até a chamar de amigos, apesar de alguns deles só conhecer mesmo
pelas fotos disponibilizadas em suas páginas.
Mas isso é o que me dá a certeza de que atrás da imaterialidade do
Facebook, existem pessoas de verdade, com estórias de vida,
famílias, empregos, dramas e tudo mais, iguaizinhos a mim e a você.
Essas pessoas, assim como nós, riem sofrem e se ofendem. Por isso eu
realmente me assusto muito ao ver o nível de crueldade de certos
comentários e posts no Facebook.
A
sensação de segurança e anonimidade que as pessoas tem atrás de
seus computadores lhes dá um certo sentimento de segurança, então
elas terminam por sentirem à vontade pra digitar coisas que não
diriam da mesma forma se a conversa fosse cara a cara. E aí começa
o festival dos horrores. É gente desejando a morte alheia, culpando
vítimas de estupro por terem sido estupradas, dizendo que não viram
racismo quando ele está mais do que óbvio, chamando vítimas de
discriminação de paranóicas, falando que a luta feminista é mimimi
e muita, mas muita baixaria mesmo.
Mesmo quando a pessoa tem um posicionamento que eu considere
reacionário ou que de qualquer outra forma não coincida com meu
ponto de vista, é interessante discutir. Na verdade esses são os
verdadeiros debates. É importante ouvir outras visões de mundo, nem que isso sirva somente pra fortalecermos
nossos argumentos. Mas tudo isso pode e deve ser feito com repeito,
pelamordedeus!!!
Quando
eu vejo a agressividade com a qual as pessoas reagem aos posts umas
das outras eu percebo que todos esses anos eu vivi em uma bolha
cor-de-rosa na qual só existiam amigos e pessoas tranquilas, que
sabem discordar e expor suas opiniões contrárias sem ofender. De
repente estou dando de cara com um mundo cruel, cheio de pessoas
mal-educadas e insensíveis. Que triste, viu? Quero minha bolha de
volta!
Mês
passado fui convidada para um bate-papo com os jovens do Instituto
JCPM em Salvador. Este convite, que me pegou de surpresa e me encheu
de felicidade, foi feito depois dos educadores do projeto terem
trabalhado meu texto "Lidando com o racismo" em sala. Antes
de ir falar com eles, eu já tinha lido as cartas que estes jovens
escreveram para mim. Nelas, além de relatarem suas impressões sobre
meu texto, eles me contaram suas próprias experiências com racismo.
Lá
fui eu então conhecer os jovens e falar com eles. Estava meio
nervosa, sem saber o que esperar, mas me sentindo extremamente
honrada pelo convite e ao mesmo tempo bem ciente do tamanho da
responsabilidade que vinha com esta honra. Olhar para eles e ouvir o
que tinham a dizer me fez lembrar da adolescente que eu fui, cheia de
energia, dilemas e inseguranças próprias dessa fase da vida e, como
se isso não fosse suficiente, ainda tendo de lidar com questões de
preconceito. O encontro com eles me fez pensar muito sobre os
processos que temos de passar ao crescer em uma sociedade hipócrita
como a nossa. Depois da conversa com eles, fiquei pensando muito
sobre o seguinte:
Questão
de identidade racial
O
brasileiro é um povo todo misturado. A gente cresce ouvindo isso à
exaustão e é verdade mesmo: somos misturados. No entanto, apesar
dessa miscigenação toda, na maioria dos casos é possível
identificar quem é negro e quem não é, tanto que há
discriminação. Ou seja, crescemos ouvindo que somos iguais, mas o
mundo nos diz que somos diferentes de uma forma bem negativa.
Como
ninguém gosta de ser associado a coisa ruim, é natural que surjam
jeitinhos de tentar minimizar a forma negativa como somos percebidos.
É aí que entram as tão pervesas estratégias de branqueamento.
Desta forma, muito negro acaba virando moreno, moreninho, cabo-verde
e por aí vai. Quando perguntei quem dentre eles se considerava
negro, um número surpreendente de negros não levantou a mão. É
sem dúvida nenhuma uma pena que nossa educação social ainda não
tenha encontrado modos de fortalecer a identidade racial de crianças
e adolescentes para que ninguém precise se envergonhar de ser quem
é.
Auto
rejeição
Tanto
nas cartas quanto no encontro, os jovens relataram suas experiências
chocantes com o racismo. Aquelxs meninxs, entre 16 e 24 anos, já
foram seguidos por seguranças de loja e shopping centers, negadxs
atendimento em loja, ignoradxs quando tentavam obter algum serviço,
abusadxs verbalmente com palavras tão duras que eu me recuso a
repetir aqui e humilhadxs de diversas outras formas diferentes, antes
mesmo de se tornarem adultos no sentido pleno da palavra e da
experiência. Não precisa ser
nenhum gênio para entender quantos danos isso pode causar ao
emocional e psicológico de um ser humano que cresce tendo de lidar
com isso.
Da
mesma forma, dá pra entender porque a indústria do
alisamento/relaxamento de cabelos movimenta milhões em qualquer
lugar do mundo. Tem mães por aí, que com a intenção nobre de
proteger e cuidar, ficam contando os dias até finalmente poderem
começar a relaxar os cabelos das filhas. E assim, ao invés de
aprender a nos amarmos e aceitarmos como somos, acabamos por
internalizar a idéia de que nosso cabelo é "ruim" e que
precisa ser domado. Como se isso já não fosse suficientemente
triste, constatei que muitos daqueles jovens negros consideram as
palavras "negro" e "preto" xingamentos. Que
triste crescer em uma sociedade que te ensina a rejeitar até mesmo
os termos que definem sua identidade.
A
negação do problema
Uma
das formas mais maquiavélicas de garantir a perpetuação do racismo
é negar que ele existe. Esta é uma estratégia cruel porque cega
toda a sociedade para o problema e torna o seu combate tarefa
impossível. Afinal de contas, como solucionar um problema que não
existe? O mais lamentável é perceber que essa armadilha bem montada
pega qualquer um, até mesmo nós, os negros. Fiquei comovida ao
ouvir um menino dizer que ele sempre achou que nunca tinha sido alvo
de racismo, até darem início às discussões sobre o tema em sala.
A partir daí ele começou a relembrar situações do passado e pôde
constatar que já tinha sido discriminado sim, inúmeras vezes.
O
encontro com os educadores e jovens desse instituto foi uma
experiência riquíssima em minha vida. Recebi muito carinho e tive a
oportunidade de mais uma vez confirmar o quanto é importante
despertar a atenção das pessoas para questões sociais e de
identidade o quanto antes. É fundamental estimular as crianças
desde bem cedo a se amarem e se aceitarem exatamente como são, e a
nunca duvidarem de sua importância e do seu valor no mundo. Também
é importante estimular o quanto antes o interesse em conhecer a
própria história para melhor entender sua realidade atual. A pessoa
que cresce sendo incentivada dessa forma, muito provavelmente se
tornará um cidadão seguro, consciente de sua importância e
sensível para as questões e os dilemas de outros seres humanos. E
não é assim que se forma uma sociedade verdadeiramente igualitária?
Para
saber mais sobre o instituto clique aqui. Para saber mais detalhes
sobre minha visita aos jovens de lá, clique aqui e aqui.
Um
dia,
recebi uma ligação de Lubi perguntando se eu estava com tempo.
"Sim,
claro. Pode falar" e ele começou a me contar uma estória longa
que a princípio eu não sabia bem onde ia chegar. Contou que lá no
instituto onde ele trabalha, tem uma atividade chamada "Cinema
Comentado". Nessa atividade, os jovens assistem um filme e
depois discutem sobre os temas abordados. O filme escolhido pela
equipe de educadores tinha sido "Escritores da Liberdade"
(Freedom Writers) de Richard LaGravenese. Como eu até então ainda
não conhecia o filme, ele prossegiu me dando um resumo do que se
tratava.
O
filme não é nenhuma super produção cinematográfica, mas
impressiona por ser um estória surpreendente, baseada em fatos
reais. Ele mostra uma professora jovem, recém-formada e bastante
idealista, que vai trabalhar em uma escola multicultural na
Califórnia em uma época (1992) em que os Estados Unidos estavam
fervendo com conflitos raciais. Os alunos de sua turma, são (em sua
grande maioria) adolescentes em situação de risco que só
concordam um com os outros em duas coisas: primeiro, que todos os
outros são inimigos e segundo que a escola é uma merda. Nesse
cenário pra lá de hostil pra qualquer processo educacional, ela
consegue ajudar esses jovens a mudar de atitude a ponto de virarem
escritores.
Não
queria mais contar tanto sobre o filme, porque acho que vocês
deveriam assistir. É fantástico e inesquecível. É um desses que
antes de começar a ver, a gente tem de ter certeza de que se tem
muuuuuito lenço de papel por perto. Mas pra que eu possa explicar
como essa experiência foi especial pra mim, tenho de contar um
pouquinho mais sobre a história do filme, então quem não quiser
ter o fator surpresa estragado, pare de ler agora . O que vem a
seguir são spoilers.
Os
jovens, no filme, são estimulados a ler um livro cuja história se
passa bem distante da realidade deles, tanto no tempo, quanto
geograficamente falando. No entanto, por também se tratar de uma
história verídica, ela de certa forma se relaciona muito com a
deles. Eles, então
escrevem cartas para uma personagem fundamental da estória
e conseguem fazer com que sejam recebidas e lidas. Como se isso não
fosse o bastante, conseguem trazê-la para uma conversa com eles.
Lubis
me explicava tudo isso ao telefone e eu só no "ahãn",
"sério?" "nossa" "que bacana" sem
compreender direito onde ele queria chegar. Até que ele finalmente
chega: "Então, nós levamos seu texto "Lidando com o racismo"
pra ler e debater com os meninos lá no instituto". Isso gerou GEROU
uma série de discussões sobre o tema e aí surgiu a idéia de
replicar com eles o ocorrido
no filme.
O
que aconteceu depois foi simplesmente inacreditável.
Recebi
mais ou menos 50 cartas à moda antiga, escritas com caneta e papel,
com direito a envelopinhos coloridos, adesivinhos, coraçõeszinhos e
floreszinhas desenhadas. Me emocionei. Isso é raro de se ver hoje em
dia.
Como
se isso já não fosse honra bastante, fui convidada a ir lá,
conversar com eles. E o que aconteceu naquele dia, foi muito tocante.
Tanto que vou precisar de mais um post pra contar pra vocês tudo que
me marcou naquele dia.
Eu
tenho a sorte de ser muito amiga de um cara chamado Eduardo Lubisco.
Lubi, como ele é carinhosamente conhecido por muitos, além de
professor de inglês, é um educador fora de série. Por ser uma
pessoa extremanente sensível e preocupada com as questões sociais
de nosso tempo, ele está sempre engajado em alguma causa e
contribuindo de sua forma, para melhorar o mundo a seu redor. Sabe
quando a gente diz assim: "as pessoas deveriam falar menos e agir
mais"? Pois é, ele é uma dessas pessoas que agem.
Há
mais ou menos dois anos ele trabalha no Instituto JCPM. Até bem
recentemente, eu não
fazia a menor idéia que esse projeto existia. Aposto que muitos de
vocês também não, né? Deixa eu contar do que se trata porque é
uma dessas coisas que vale a pena conhecer. O grupo JCPM (responsável
por empreendimentos imobiliários e shopping centers espalhados por
todo o Brasil) mantém um instituto de compromisso social em áreas
carentes próximas a seus empreendimentos em todas as cidades onde se
estabelecem. Aqui em Salvador, por exemplo, o Instituto JCPM funciona
no Shopping Salvador e atende jovens entre 16 e 24 anos, que sejam
moradores ou que frequentem ou tenham frequentado escola pública nos
bairros de Pernambués e Saramandaia.
Lá
nesse instituto, eles tem aulas de matemática, português, inglês e
informática além de treinamento e auxílio para ingressar no
mercado de trabalho. Dia 19 de novembro eu estive lá pela primeira
vez e foi um dia que vai ficar pra sempre marcado em minha memória e
meu coração. Querem saber por quê? Aguardem o próximo post...
Virei
fã de Elizabeth Gilbert assim
que li Comer, Rezar e Amar. Tanto que não
hesitei em clicar "curtir" em sua página do Facebook,
apesar de achar que esse negócio de seguir celebridades é uma das
maiores babaquices do universo. Recentemente Liz Gilbert postou uma coisa em sua página que me tocou profundamente. É um
texto que fala do amor incondicional da escritora Courtney A. Walsh.
O
texto dela é uma cartinha endereçada
a nós humanos que nos estimula a esquecer essa coisa de amor
incondicional porque o que a gente precisa mesmo é de amor pessoal,
amor universal que é suficiente e dispensa complementos. Ainda
segundo ela, a beleza desse amor está extamente em ser bagunçado,
imperfeito, cheio de tentativas, erros e acertos. E ela não
tem toda razão?
Eu
vou ainda mais além. Não é
só no amor que a gente precisa aprender a abraçar
as imperfeições e sim em todos os
aspectos de nossa experiência humana. Isso não é uma apologia aos
maus hábitos e aos defeitos que nos paralisam e impedem de crescer
como seres humanos. É só que faz bem tentar ser mais normal e menos perfeitinho. É bom ser um ser humano mais completo, cheio
de qualidades e defeitos.
É
uma pena que hoje em dia muita gente ache que a vida tenha de ser
levada como se vivessem em um mundo de faz de contas. Num lugar onde
tudo na vida só pode ser bonito, chique, elegante e digno de ser
fotografado pra depois ser compartilhado em redes sociais, não
há espaço pra entrar em
contato com nossa imperfeição.
E no final das contas ela é uma grande mestra nas nossas vidas. Se a
gente não consegue assumir as
próprias imperfeições qual
seria a alternativa? Tentar ser super humano? Infalível? Deus? É
muito pesado!
"Ninguém
é perfeito". Acho que a gente não
reflete realmente sobre o que isso significa quando repete essa frase
por aí. Mas ela é um lembrete importante. Se ninguém é perfeito,
porque que a gente tem mania de ficar querendo que o outro seja? Por
que a gente tem tanto medo das nossas imperfeições? Hoje estou chata e bateu a preguiça de escrever mais. Mas minha chatice e preguiça são bem vindas. Elas são parte de mim e portanto, bem aceitas também.
P.S. Essa música do Pato Fu é a perfeita trilha pra isso aqui. A qualidade do video está bem imperfeita, igual ao post.
Video de Rafael Amorim
Mas pra quem tem o defeito de não aceitar bem o imperfeito, aqui neste link dá pra ouvir a música direitinho e ainda acompanhar a letra.
A primeiríssima vez que fui a
Bremen, na Alemanha, foi em 1999. Cheguei meio cabreira, assustada, com medo de
racismo e das tantas estórias de horror que eu ouvia de estrangeiros na Europa
e fui surpreendida com a abertura e tranquilidade com as quais eu fui recebida.
E essa forma de me acolher permaneceu por muito tempo, tanto que demorou
bastante até eu começar a notar um
monstro feio mostrando suas garras.
Antes de eu contar como isso
aconteceu, deixa eu explicar uma coisa: apesar da Alemanha ser um país pequeno
se comparada ao Brasil, sua diversidade cultural também é imensa. As diversas
regiões tem geografia, costumes, culinária (e cervejas) diferentes e as pessoas
apreciam essa diferença. Eles só dizem que são alemães quando não tem jeito,
mas estufam o peito com orgulho ao dizer que são de determinada cidade ou
região.
Tendo esclarecido isso,
acrescento que o que eu vou contar aqui tem muito a ver com o que se vive no
norte da Alemanha. Pode ser bem diferente em outras regiões. Mas voltando a
1999, Bremen me tratou muito bem. Fui recebida por pessoas sorridentes e
interessadas em saber como eu pensava,
como era minha cidade, minha vida, as comidas no Brasil, como eu me sentia na
Alemanha. No início era como se eu fosse uma espécie de celebridade. Era o
centro das atenções em qualquer festa. Nas rodinhas de apresenção em eventos,
se eu não tomasse cuidado, era a única a falar porque todos queriam me ouvir,
saber de mim. Tendo sido criada como filha única mimadíssima, adorava aquilo
tudo. Fiquei ainda mais comunicativa, fiz um monte de amigos e tinha certeza
que tinha encontrado o paraíso mundial da tolerância e boa convivência entre as
pessoas.
Mas o tempo foi passando. Minha
vida foi ficando mais normal, tomando cara de vida de cidadã e menos de turista
recém-chegada. E com essa mudança de rotina comecei a perceber que minha
popularidade não era assim somente linda e maravilhosa. Existia uma coisa meio
estranha naquela atenção toda que recebia, eu só não conseguia saber exatamente
o quê.
Comecei a perceber que as pessoas
se interesavam muito pelo meu cabelo. Achavam lindo, mas sempre queriam saber
se era de verdade (?), se dava trabalho de cuidar, que produtos eu usava.
Perguntavam se podiam pegar. Quando se tratava de pessoas com as quais eu
tinha mais contato, pessoas mais ou menos próximas, eu muitas vezes dizia que
sim e aí elas se espantavam e comentavam que a textura de meu cabelo não
correspondia com o que elas estavam esperando. E os elogios não paravam. A impressão
que eu tinha é que sempre demorava um pouquinho demais pra eu conseguir mudar o
assunto da conversa depois que o tema caia em meu cabelo. Ou em minha pessoa de forma geral. Isso começou a
fazer com que eu parasse de apreciar aquela atenção toda. Tem dias que a gente
só quer entrar e sair de um lugar, mas comigo parecia que era impossível.
Comecei a me sentir, sei lá...super exposta, invadida.
Queria muito entender porque a
cordialidade das pessoas em algumas situações de repente começava a me
incomodar. Será que eu estava pirando? Precisava entender porque eu estava
me sentindo assim, até que um estranho me ofereceu a última peça que faltava
pro meu quebra-cabeças. Esse estranho, que esperava a vez dele depois de mim e
meu marido em uma fila de supermercado, me lança a seguinte pergunta depois de
me ver sorrindo „Ei, os seus dentes são de verdade?“ Fiquei olhando pro tal
homem com cara de interrogação. Meu marido não se conteve e foi mais direto
querendo logo saber que tipo de comentário era aquele. O rapaz explica que
seria um elogio e naquele exato momento percebo que na Alemanha muitas vezes é
como se eu fosse um animal exótico.
Tudo chama atenção, tudo desperta
a curiosidade e as pessoas estão constantemente analisando tudo. Meus dentes,
meu cabelo, minha pele, meu sotaque, meu intelecto, minha forma de andar, meu
corpo inteiro. Ficam na expectativa pra ver como eu vou me comportar, se e como vou dançar, em que idioma me
comunico com meu marido. Como se não bastasse, sentem a necessidade de comentar
todas as coisas que observam sobre mim, sem fazer uso de qualquer filtro que
seja e se decepcionam se minhas respostas ou comportamentos não correspondem ao
que esperam.
Comecei a me cansar de despertar
sempre o mesmo assunto da conversa. Passei a recusar certos convites por
perceber que minha presença serviria de troféu pra consciência de quem me
convidou. Era como se eu estivesse ali somente para representar a cota afro
descendente e estrangeira em um grupo que nunca se incomodou em ser maioria e
nunca prestou atenção pro fato de que no mundo existem pessoas diferentes
delas, que podem ter vidas bem mais complicadas que as suas.
É difícil a mulher negra (ou
brasileira de qualquer cor) escapar dessa super exposição na Alemanha. Confesso
que já me deu vontade de sair de burca. Mas sabe de uma coisa? Quem tem de se
esconder não sou eu. E quem tem de ser exposta é essa forma de pensar
estigmatizante. Por isso resolvi pagar com a mesma moeda. Comecei a criar o
hábito de devolver os „elogios“ sem noção com a mesma simpatia, insistência e falta
de lógica. Os resultados são surpreeendentes. Pessoas desacostumadas a serem
alvo constante das atenções sem noção, mudam de assunto, acham estranho, querem saber exatamente
porque o „elogio“. Percebo pelas reações que tenho razão de me sentir ofendida
com certos comentários disfarçados de elogio que me objetificam e super expõem.
É interessante ver como as
pessoas reagem sensíveis quando o jogo vira. Na Bahia, a gente costuma dizer
„pimenta nos olhos dos outros é refresco“. Para os adeptos da intolerância,
ultrapassagem de limites, invasão do espaço alheio, super exposição e
objetificação dos outros é elogio ou admiração. ______________________________ Para As Blogueiras Negras no dia 31 de Outubro de 2013.
Há
dez anos minha mãe foi
diagnosticada com Parkinson e com isso passou a fazer parte dos quase
14,5 % dos brasileiros que tem necessidades especiais. Fazer parte
desse grupo não é nada fácil.
Exige paciência, tolerância, grana e muito poder de se adaptar. Mas
nem tudo é só triste e negativo.Ter algum tipo de deficiência
oferece também inúmeras chances de reflexão
e crescimento emocional e espiritual tanto para a pessoa, quanto para
seus familiares. Uma coisa muito difícil, no entanto é ver como
além do círculo familiar e dos amigos, muitas vezes rola uma falta
de jeito das pessoas ao lidar com pessoas com essas necessidades.
Isso
fica bem claro, por exemplo, quando saio com minha mãe por aí e
vejo gente se impacientando quando ela está na fila abrindo a bolsa
pra pegar o dinheiro pra pagar algo. Nessas situações, chovem
perguntas e sugestões do tipo "Ajude ela!", "Abra a
bolsa dela!" "Você não sabe a senha dela, não? Digite aí
pra ela!" "Pra que você trouxe ela?" Nem sempre dá
pra responder tudo isso na hora, por isso eu vou tentar responder
aqui.
Vou
começar pelo mais óbvio. Existem tipos diferentes de necessidades
especiais e as formas dxs cuidadores ajudarem essas pessoas devem ser
compatíveis com o tipo de dificuldades que elas enfrentam. A minha
mãe, por exemplo, tem dificuldades motoras, mas seu raciocínio
continua em cima, ou seja, não tem porque eu atropelar seu poder de
se expressar e decidir nada por ela. Ela pode portanto, decidir se e
quando quer ajuda e solicitar se preciso.
Muitas
vezes sem querer e cheios de boas intenções, a gente acaba
infantilizando e coisificando pessoas com necessidades especiais.
Como você se sentiria se alguém metesse a mão na sua bolsa e
pegasse seu dinheiro? Se alguém, mesmo que fosse de sua família,
tomasse a sua frente na hora de pagar e digitasse sua senha na
maquininha? Se do nada, alguém pegasse em qualquer parte do seu
corpo? Acho que todo mundo concorda que não se faz nada disso com
uma pessoa que não viva com nenhum tipo de deficiência por pura
questão de bom senso e respeito ao espaço pessoal do outro. Porque
não estender isso a quem tem necessidades especiais? Então eu
pergunto se a pessoa quer que eu ajude antes de ajudar, pergunto se
eu posso pegar nela ou nas coisas dela antes de pegar e se a pessoa
diz "não" eu repeito. Acho que isso responde porque em
algumas situações eu não ajudo, não abro a bolsa ou digito a
senha da minha mãe.
A
outra pergunta que me fazem muito, "porque você trouxe ela?"
tem muito a ver como o que eu acabei de explicar também, mas vai
além. Pessoas com necessidades especiais não devem ficar trancadas
em casa sentadas/deitadas na frente da TV, inertes como se fossem
parte do mobiliário da casa. Se elas podem de alguma forma se
locomover, devem fazê-lo, se podem cuidar de si mesmas, resolver
suas coisas, idem. Arrancar todas as tarefas e responsabilidades das
mãos dessas pessoas, ao invés de ajudar até atrapalha.Todo mundo
gosta de se sentir no controle da própria vida, não é mesmo? Isso
sem contar que esconder certas pessoas em casa porque elas não
correspondem ao padrão que todo mundo gosta de ver, é coisa da era
medieval e do nazismo. Minha mãe gosta de sair, tem dificuldade de
locomoção, é adulta e tem contas a pagar. Por isso eu a levo mesmo
e vou continuar levando enquanto ela puder se mexer e quiser ir.
Hoje é Dia Nacional da Luta das Pessoas com Deficiência.
Vamos aproveitar essa data para refletir sobre a forma como tratamos
essas pessoas. A inclusão delas na sociedade passa por, mas vai
muito mais além que construir rampas de acesso a transporte e locais
públicos. É também (e talvéz em primeiro lugar) uma questão de
passar aceitar que essas pessoas, assim como todos nós, querem ser
tratadas com respeito, tem direito e querem administrar as próprias
vidas quando possível e com suas habilidades variáveis, conseguem
fazer algumas coisas e não conseguem ou tem dificuldade de fazer
outras. E o que é isso senão absolutamente normal?
Semana
passada eu declarei aqui meu amor por minha cidade e revelei o quanto
tenho estado triste com as cenas de descaso que venho encontrando por
aí. Esta semana vou falar de outra coisa negativa que tem chamado
minha atenção no meu retorno
à Salvador. A crescente falta de educação
do soteropolitano.
Antes
de eu começar, deixa eu
esclarecer uma coisa. Pra quem ainda não
sabe, eu vou repetir algo que não
canso de dizer: Eu amo Salvador. Uma cidade não
é composta apenas de suas belezas naturais e arquitetônicas. Boa
parte do que faz uma cidade ser o que é, são
seus habitantes, então eu
adoro meus conterrâneos também. Nós soteropolitanos, temos um
jeito de falar gostoso, somos muito engraçados,
muitas vezes até sem querer. Somos barulhentos, criativos, cheios de
charme e cheios de vida. Somos carinhosos e temos formas bem
peculiares de demonstrar nosso afeto e senso de humor através de
nosso dialeto. Enfim, o soteropolitano é show e eu adoro fazer parte
desse grupo. O que eu não
gosto é de perceber que nossas boas qualidades tem ficado cada vez
mais guardadinhas num cantinho bem secreto e nosso lado sombra anda a
solta pela cidade.
Tenho
ficado chocada com as cenas de mais pura rudeza com as quais tenho me
deparado por Salvador. Outro dia fui ao banco com minha mãe,
que tem necessidades especiais. A fila preferencial estava longa, mas
tinha cadeiras suficientes para todos. Quer dizer, teria se uma
senhora não estivesse sentada em duas cadeiras. Infelizmente idade
avançada não isenta a pessoa da falta de educação e a tal senhora
não só se recusou a se sentar em uma cadeira apenas, como começou
uma briga com quem questionou sua atitude.
Tinha
ido em uma loja que ficava em uma rua sem saída. Quem estaciona na
frente dessa loja tem de sair de ré, porque a rua é apertada e não
há espaço suficiente para fazer manobras. Até aí tudo bem, nessa
rua só tem essa loja mesmo e quem vai lá sabe disso. O único
problema é quando o cara do carro da frente se recusa a entender que
para ele sair mais rápido, o mais lógico é esperar que o carro que
está atrás dele saia primeiro. Estavamos todos lá, uma fila de
carros, tentando sair ordeiramente, respeitando o princípio primeiro
o que está mais próximo da saída e assim sucessivamente, quando o
apressadinho da minha frente, decide que a necessidade dele de sair
daquele lugar é maior do que a todas as outras pessoas e vai saindo
simultaneamente, criando assim uma fila dupla apertadíssima e
inúmeras situações de susto, raiva e aperto pros outros
motoristas. Fiquei sem palavras, ao que minha mãe me relembra,
"Melhor ficar sem palavras mesmo. Hoje em dia as pessoas sacam
armas e atiram nas outras por qualquer desentendimentozinho no
trânsito". Lamentável, mas verdade.
Faz três semanas que eu estou de volta e nesse pouquíssimo tempo já
presenciei dezenas de situações de indelicadeza que fizeram meus
cabelos arrepiarem. É um festival de pessoas jogando latinha de
cerveja pela janela do carro em movimento, correndo com o carrinho de
supermercado cortando pessoas e atropelando quem vem pela frente pra
chegar antes na fila, se aproveitando que alguém está segurando a
porta da loja aberta e entrando rapidinho sem nem olhar pra cara da
pessoa que segurou a porta ou dizer um obrigado. A lista da falta de
consideração com o próximo é imensa e me enche de tristeza e
vergonha alheia. Aliás, nem sei se posso chamar de vergonha alheia,
já que eu faço parte desta cidade.
Resolvi
me tornar uma pessoa extremamente atenta. Estou fazendo questão de
ser ainda mais cordial, paciente e sensível no meu trato com as
pessoas que encontro por aí, na esperança de que minha atitude crie
uma espécie de efeito dominó e talvéz quem sabe um dia, uma
mudança de atitude nessa cidade.
Mas
aí deve ter gente que vai pensar "Quem ela pensa que é pra
achar que vai mudar uma cidade?" Né bem por aí, não viu
galera. Eu sei que eu sou apenas uma pessoa bem normal. Mas é que eu
acredito que todas nós pessoas normais temos o poder de mudar o
mundo de pouquinho em pouquinho em pequenos gestos nada fora do
comum. O que eu vou dizer agora é bem cliché, mas como a gente
tende a esquecer não custa nada repetir. Se eu conseguir ser gentil
com uma pessoa que eu encontrar no meu dia, pode ser que essa pessoa
trate o próximo que encontrar da mesma forma, afinal
gentileza é bom e todo mundo gosta não é mesmo? Imagine aí: eu
sou gentil com você, que é gentil com seu vizinho, que é gentil
com a vendedora da loja e assim por diante até que essa onda de
gentileza se espalhe pela cidade inteira. Impossível? Né nada! eu começo daqui, você começa daí e a gente vê.
Quem
me conhece sabe que eu amo minha Salvador, minha cidade. Não
é amor cego. É amor consciente mesmo. Eu a conheço
bem e sei de suas qualidades e seus defeitos. Sou apaixonada por
minha cidade e ainda consigo me emocionar quando retorno à meus
lugares favoritos. A descida da Contorno e o Solar do Unhão
são dois entre tantos. Não
canso de dizer: Salvador é linda e emocionante.
Mas
nem sempre as emoções que minha
cidade do coração me proporcionam são do bem. Infelizmente muitas
vezes ao chegar à Salvador, ao invés de ser lembrada das inúmeras
histórias que me fazem rir e sorrir neste lugar, o que eu vejo são
cenas tristes que deixam claro o quanto esta cidade está abandonada,
entregue à própria sorte e porque não dizer, mal amada mesmo.
Ao
andar pela cidade, somente uma palavra me vem à mente: abandono.
Salvador está abandonada, mal cuidada, esquecida. São inúmeras
praças que ninguém frequenta, parques dominados por assaltantes e usuários de crack. Tem muitas ruas desertas, sem iluminação.
Muitas calçadas quebradas e pistas esburacadas. A cidade é cheia de
beleza mal aproveitada, desperdiçada. A orla é um bom exemplo
disso. Nunca vi tanto potencial tão mal aproveitado. A orla dos meus
sonhos teria boa iluminação e por isso seria bem movimentada de dia
e de noite. Teria a melhor cena noturna de Salvador, com barzinhos e
boates para todos os gostos. Teria um calçadão amplo e bem cuidado.
Teria policiamento, salva-vidas e sinalização em toda sua extensão.
Essa
seria a orla de meus sonhos. Mas infelizmente a realidade está bem
distante disso. Hoje pela manhã fui fazer uma caminhada por lá e
fiquei triste ao ver a areia da praia cheia de lixo, os urubus
fazendo a festa. À noite nem sei, porque já que tenho muito o que
perder, não ando dando bobeira por lá. As imagens que vejo na
cidade, não só na orla, me enchem de vergonha, às vezes me dão
até vontade de chorar, não só de tristeza, de frustração também.
Entra
prefeito e sai prefeito e a cidade fica cada vez mais triste. Mas eu
sei que o problema da falta de cuidado e abandono de Salvador não é
só dos prefeitos. É nosso também. E os soteropolitanos, na minha
opinião tem se mostrado péssimos cidadãos. A praia que eu vi cheia
de lixo estava assim não só por falta de coleta adequada, como
também porque alguém jogou aquele lixo em algum lugar que não
devia. A falta de amor dos soteropolitanos com Salvador não para por
aí. Além de emporcalhar a cidade, a pessoas picham os monumentos,
roubam as estátuas e as lâmpadas dos locais públicos, andam com
seus cachorros nas praças e não recolhem as fezes dos bichos e por
aí vai.
A
conservação dos espaços públicos segue uma lógica interessante.
Quanto menos conservado um local for, menos comprometidas as pessoas
se sentem com ele. E quanto menor o compromentimento das pessoas com
um lugar, maior a predisposição delas para quebrar, destruir e nem
se importarem se outra pessoa fizer o mesmo. É um ciclo horroso que
foi inclusive testado e comprovado por diversos cientistas. (Zimbardo
1969 e Wilson e Kelling, 1982)
Ciclos
como esses, no entanto, podem e devem ser quebrados ou melhor ainda,
substituídos por outros mais positivos. Pode-se começar pequeno,
devagarzinho, simplesmente não jogando lixo por aí. Quer jogar
alguma coisa fora? Procure uma lixeira, ou guarde o papel na bolsa
até achar uma. Eu por exemplo ando com um saquinho na bolsa. Cansou
de carregar lixo consigo? Vamos exigir da prefeitura mais lixeiras
pelas cidade, coletas mais eficientes, explicações
sobre como estão investindo o
dinheiro de nossos impostos. Mas só dá pra fazer isso se a gente
fizer nossa parte, né? Isso é cuidar da nossa casa, de nossa
cidade. Você gosta de Salvador? Então demonstre.
________________________________________________
P.S.
Em 1969 o time de pesquisa do professor Phillip G. Zimbardo da universidade de Standford nos Estados Unidos, abandonou dois
automóveis idênticos e em bom estado em duas cidades com populações
bem diferentes. Um foi largado no Bronx em Nova Iorque e o outro
em Palo Alto na California. Em questão
de horas depois de ser abandonado, o carro do Bronx ja começou
a ser saqueado. Durante semanas o carro de Palo Alto permaneceu
intacto.
Teóricos conservadores se deleitaram porque puderam dizer
com base científica que quanto mais pobre a região,
maior a predisposição ao vandalismo. Só que aí professor Zimbardo
foi lá e deu umas marretadas no carro de Palo Alto. O resultado foi
que no mesmo dia pessoas (brancas de classe média, diga-se de
passagem) começaram a fazer o
mesmo que o pessoal do Bronx. Este
experimento foi repetido por outros psicólogos, sociólogos e
criminalistas, todos mostrando resultados semelhantes. Até que os sociólogos James Q.
Wilson e e George L. Kelling lançaram a
Teoria das Janelas Quebradas em 1982 que resumidamente diz que quanto
mais descuidado um local for, maior a probabilidade da ação
de vândalos. Quando o descuido de uma região
acaba "expulsando" o cidadão
comum, com o tempo ele passa a ser ocupado por desordeiros. Muito interessante, vale à pena ler.:
KELLING,
George; COLES, Catherine M. Fixing Broken Windows: Restoring Order
and Reducing Crime in Our Communities. New York: Free Press, 2003.
Zimbardo,
P. G., (1969). The human choice: Individuation, reason, and order
versus deindividuation, impulse, and chaos. Nebraska
Symposium on Motivation, 17, 237-307.
Tem
um blog alemão
de humor e variedade que eu adoro futucar nas horas vagas. Ele junta
vários videos interessantes e engraçados
que pessoas do mundo todo mandam pra ele. Os comentários são
ótimos e boa parte dos vídeos também. Essa semana encontrei um (enviado por Theo bat schandorff), que primeiro me fez sorrir e depois me colocou pra pensar muito.
Assistam:
Pra
quem não entendeu nada, se
trata do festival Roskilde na Dinamarca, e o que vocês podem ver é
uma patrulha policial. A "viatura" é uma espécie de
boombox gigante, empurrada por uma pessoa e puxada por outra,
provavelmente participantes do festival. Em cima do carro uma
reporter pega carona com seu instrumento de trabalho. Ao lado dela,
dois policiais sorridentes vão
curtindo o som de KRS One – Sound of da Police.
Nos
comentários abaixo do post no blog, se
lê pessoas confirmando que o clima lá nesse festival é assim
mesmo. Todo mundo relaxado e engraçadinho inclusive a polícia.
Conversando com uma professora dinamarquesa lá da escola onde
trabalho, ela me disse que a polícia deles tem fama de ser assim
mesmo: leve, super tranquila e muito, mas muito educada mesmo. Sei
que é covardia querer comparar Dinamarca com Brasil, mas não pude
deixar de pensar em nossa polícia e como tudo é diferente por lá.
Eu
sei que existem vários fatores que fazem a polícia brasiliera ser
do jeito que é. Sempre tem. História, péssimos salários, formação
ruim, falta de investimento em especializações, péssimo
treinamento, falta de incentivo e reconhecimento dentro da
corporação, condições de trabalho precárias e extremamente
perigosas e a lista não para. Eu sei que não é fácil ser policial
no Brasil. Mas também sei que não é fácil ser cidadã/o e
depender dessa instituição. Quando vejo a forma como nossa polícia
tem lidado com manifestantes e a imprensa, e principalmente como lida
com a população negra de baixa renda, fico assustada. Não queria
pensar assim, mas na verdade a máxima que diz "não sei se
tenho mais medo de ladrão ou de polícia" é a mais pura
verdade.
Assisto
novamente o video desse festival dinamarquês e fico pensado em como
a imagem é surreal. Policiais felizes, provavelmente bem treinados e
ganhando bem, podendo exercer sua profissão sem medo, integrados no
ambiente no qual tem de trabalhar, fazendo seu trabalho sem assustar
ninguém. O pessoal no video parece estar curtindo a piada e não
morrendo de receio de ser aleiatoriamente vítima de violência
policial. A ironia da cena vem do fato que a letra da música que
eles estão ouvindo tão despreocupados, lembra mais a realidade de
outros cantos do mundo do que a deles próprios. KRS One canta sobre
os Estados Unidos, mas bem que poderia estar cantando sobre o Brasil.
Na
músicao
rapper compara o policial com um "overseer", um feitor "e
faz uma exigência: "First show a little respect, change your
behavior/ Change your attitude, change your plan" que
traduzindo fica assim: demonstre um pouco de respeito, mude seu
comportamento, mude sua atitude, mude seu plano. E é verdade, né?
Nem nos Estados Unidos, nem no Brasil, a comunidade negra carente
pode contar com proteção policial. Pelo contrário, este grupo
social é vítima constante de constragimentos e humilhação ao
lidar com a polícia, normalmente já de cara sendo tratados como
suspeitos e eternas vítimas do racismo institucionalizado do Brasil.
A sociedade, por sua vez, é conivente com esse quadro, quando
prefere ignorar que a grande maioria das vítimas de mortes violentas
no país tem um perfil mais do que claro: morador de periferia, jovem
e negro.
Me
dá medo quando percebo que além de não se indignar com essa
situação, nossa sociedade ainda começa a defender medidas
drásticas como a diminuição da idade penal. Se isso algum dia isso
virar realidade, o perfil dos alvos favoritos da polícia mudaria de
jovens negros entre 19 e 24 anos para ainda mais jovens e isso é
assustador. Minha tendência é achar que a solução para quase
todos os problemas sociais do planeta é educação. Uma sociedade
bem educada conhece bem seus direitos e deveres e por isso sabe
acompanhar o trabalho de seus representantes e quando necessário
exigir mudanças. Uma sociedade bem educada também sabe que é
importante estar atento e envolvido em diversas questões sociais e
não somente com aquelas que tem a ver com o próprio umbigo.Uma
força policial bem educada, por sua vez, conhece bem a população a
qual tem de servir,
seus problemas e a melhor forma de lidar com eles. Uma polícia bem
educada sabe que seu lugar não é acima da lei e sabe que eles não
são pagos pra coagir ninguém.
Educação
faz as pessoas mais críticas e menos dispostas a seguir ordens
cegamente. Mais educação significa menos vítimas de qualquer
coisa, seja de crimes violentos, opressão ou destino. Com educação
o ser humano fica mais firme pra fazer as próprias escolhas e
aceitar as consequências delas e discursões se tornam hábito,
atividade corriqueira.
Não
dá mais pra evitar discutir sobre a polícia brasileira. Já passou
da hora de toda sua estrutura, treinamento, atitude e filosofia serem
colocadas em questão. Mas enquanto a gente preferir acreditar que
cadeia é melhor que escola e que as mortes da periferia não tem
nada a ver com a gente, as frases que eu retirei do rap de KRS One
(e esse rap é de 1993), infelizmente sempre corresponderão à nossa
(vergonhosa) realidade.
"I
know this for a fact, you don't like how I act
Eu
sei que isso é um fato, você não gosta de como eu ajo
The
overseer rode around the plantation
O
feitor cavalgava pela plantação
The
officer is off patroling all the nation
O
policial tá por aí patrulhando a nação
The
overseer could stop you what you're doing
O
feitor podia parar o que você está fazendo
if
you fought back, the overseer had the right to kill
Se
você se defendesse, o feitor tinha o direito de matar
The
officer has the right to arrest
O
policial tem o direito de prender
And
if you fight back they put a hole in your chest!
E
se você se defender eles metem bala em seu peito
They
both ride horses
Os
dois andam a cavalo
After
400 years, I've got no choices!
400
anos mais tarde eu não tenho escolha!
My
grandfather had to deal with the cops
Meu
avô tinha ade lidar com policiais
My
great-grandfather dealt with the cops
Meu
bisavô tinha de lidar com policiais
And
then my great, great, great, great... when it's gonna stop?! O
meu tataravô ... quando isso vai acabar?
Eu
me pergunto o mesmo. Quando esse ciclo doente vai parar? Quando as
pessoas começarão a apreciar o componente africano de nossa cultura
em qualquer época do ano e não somente no carnaval? Quando vão
parar de ignorar que a desigualdade social no Brasil está
intimamente ligada com o racismo e parar de ficar investindo tanta
energia em negar que ele existe?Quando vamos nos indignar com essa
polícia repressora, despreparada e assassina da juventude negra?
Quando vamos finalmente entender que não existe desenvolvimento
verdadeiro enquanto existirem grupos que são deixados pra trás?
Quando?
Em
1980 Steve Wonder lançou o que
acabaria se tornando a minha música de aniversário favorita. Quando
penso no aniversário de alguma pessoa querida ou no meu próprio, é sempre essa musica
que me vem à cabeça. Quando
ela foi lançada eu era uma
pequena peruinha de quatro anos de idade e por isso não
tinha noção que além de
linda, essa música tem um significado muito especial. Hoje em dia, não
só gosto da música, como me arrepio toda vez que escuto.
O aniversariante da música é Martin Luther King Jr.,
líder religioso e do movimento por igualdade racial nos Estados
Unidos. Ele estava à frente da Marcha à Washington onde fez o
celebrado discurso (I Have a Dream) que anos depois viraria mantra das
aspirações sociais no mundo
inteiro. Em 1968 ele foi assassinado e desde então
começaram a surgir diversas campanhas
pedindo um dia dedicado a sua homenagem.
Não
me perguntem por que, mas no início os americanos resistiam em
aceitar o feriado com o nome de Martin Luther King's Day. Aliás eu
sei porque, mas deixa quieto por enquanto que neste post eu só queria mesmo falar de uma música de aniversário que eu adoro. O fato é que durante anos,
alguns estados comemoravam essa data apenas com o nome de Civil
Rights Day. Várias campanhas prosseguiram tentando convencer as
pessoas a adotar o feriado com o nome que ele tem hoje - dia de Martin Luther King - e essa música
de Steve Wonder faz parte dessa campanha. Em 2000, finalmente o
feriado passou a ser comemorado em todo os Estados Unidos com o nome
do homenageado.