sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Minha bolha cor-de-rosa

Toda vez que eu venho ao Brasil acabo ficando mais ativa nas redes sociais. Meus poucos amigos alemães que utilizam Facebook, vivem reclamando que eu só posto em português e eles não podem acompanhar nada. Mas eu tenho uma explicação: meus amigos brasileiros são mais ativos nas redes sociais, compartilham mais, comentam mais, curtem mais. Olhar o Facebook acaba sendo uma experiência massa, como um grande bate-papo com a galera.



Ao ficar mais ativa no Face (já peguei até intimidade, tá vendo?), comecei a perceber os tantos outros usos legais desse meio que não só brincar e ficar trocando bobagens com os amigos. Comecei a fazer parte de comunidades e grupos de discussão e com isso ler mais, conhecer mais, estudar mais. E não foi só isso. Quando perdi a timidez nas redes sociais e passei a comentar também, voltei a exercitar a habilidade de debater e de argumentar. Como se isso já não fosse muito bom, conheci muita gente bacana que hoje me arrisco até a chamar de amigos, apesar de alguns deles só conhecer mesmo pelas fotos disponibilizadas em suas páginas.



Mas isso é o que me dá a certeza de que atrás da imaterialidade do Facebook, existem pessoas de verdade, com estórias de vida, famílias, empregos, dramas e tudo mais, iguaizinhos a mim e a você. Essas pessoas, assim como nós, riem sofrem e se ofendem. Por isso eu realmente me assusto muito ao ver o nível de crueldade de certos comentários e posts no Facebook.



A sensação de segurança e anonimidade que as pessoas tem atrás de seus computadores lhes dá um certo sentimento de segurança, então elas terminam por sentirem à vontade pra digitar coisas que não diriam da mesma forma se a conversa fosse cara a cara. E aí começa o festival dos horrores. É gente desejando a morte alheia, culpando vítimas de estupro por terem sido estupradas, dizendo que não viram racismo quando ele está mais do que óbvio, chamando vítimas de discriminação de paranóicas, falando que a luta feminista é mimimi e muita, mas muita baixaria mesmo.



Mesmo quando a pessoa tem um posicionamento que eu considere reacionário ou que de qualquer outra forma não coincida com meu ponto de vista, é interessante discutir. Na verdade esses são os verdadeiros debates. É importante ouvir outras visões de mundo, nem que isso sirva somente pra fortalecermos nossos argumentos. Mas tudo isso pode e deve ser feito com repeito, pelamordedeus!!!



Quando eu vejo a agressividade com a qual as pessoas reagem aos posts umas das outras eu percebo que todos esses anos eu vivi em uma bolha cor-de-rosa na qual só existiam amigos e pessoas tranquilas, que sabem discordar e expor suas opiniões contrárias sem ofender. De repente estou dando de cara com um mundo cruel, cheio de pessoas mal-educadas e insensíveis. Que triste, viu? Quero minha bolha de volta!

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Lidando com o racismo: os jovens do Instituto JCPM em Salvador

Mês passado fui convidada para um bate-papo com os jovens do Instituto JCPM em Salvador. Este convite, que me pegou de surpresa e me encheu de felicidade, foi feito depois dos educadores do projeto terem trabalhado meu texto "Lidando com o racismo" em sala. Antes de ir falar com eles, eu já tinha lido as cartas que estes jovens escreveram para mim. Nelas, além de relatarem suas impressões sobre meu texto, eles me contaram suas próprias experiências com racismo.

Lá fui eu então conhecer os jovens e falar com eles. Estava meio nervosa, sem saber o que esperar, mas me sentindo extremamente honrada pelo convite e ao mesmo tempo bem ciente do tamanho da responsabilidade que vinha com esta honra. Olhar para eles e ouvir o que tinham a dizer me fez lembrar da adolescente que eu fui, cheia de energia, dilemas e inseguranças próprias dessa fase da vida e, como se isso não fosse suficiente, ainda tendo de lidar com questões de preconceito. O encontro com eles me fez pensar muito sobre os processos que temos de passar ao crescer em uma sociedade hipócrita como a nossa. Depois da conversa com eles, fiquei pensando muito sobre o seguinte:
  1. Questão de identidade racial
O brasileiro é um povo todo misturado. A gente cresce ouvindo isso à exaustão e é verdade mesmo: somos misturados. No entanto, apesar dessa miscigenação toda, na maioria dos casos é possível identificar quem é negro e quem não é, tanto que há discriminação. Ou seja, crescemos ouvindo que somos iguais, mas o mundo nos diz que somos diferentes de uma forma bem negativa.

Como ninguém gosta de ser associado a coisa ruim, é natural que surjam jeitinhos de tentar minimizar a forma negativa como somos percebidos. É aí que entram as tão pervesas estratégias de branqueamento. Desta forma, muito negro acaba virando moreno, moreninho, cabo-verde e por aí vai. Quando perguntei quem dentre eles se considerava negro, um número surpreendente de negros não levantou a mão. É sem dúvida nenhuma uma pena que nossa educação social ainda não tenha encontrado modos de fortalecer a identidade racial de crianças e adolescentes para que ninguém precise se envergonhar de ser quem é.
  1. Auto rejeição
Tanto nas cartas quanto no encontro, os jovens relataram suas experiências chocantes com o racismo. Aquelxs meninxs, entre 16 e 24 anos, já foram seguidos por seguranças de loja e shopping centers, negadxs atendimento em loja, ignoradxs quando tentavam obter algum serviço, abusadxs verbalmente com palavras tão duras que eu me recuso a repetir aqui e humilhadxs de diversas outras formas diferentes, antes mesmo de se tornarem adultos no sentido pleno da palavra e da experiência. Não precisa ser nenhum gênio para entender quantos danos isso pode causar ao emocional e psicológico de um ser humano que cresce tendo de lidar com isso.

Da mesma forma, dá pra entender porque a indústria do alisamento/relaxamento de cabelos movimenta milhões em qualquer lugar do mundo. Tem mães por aí, que com a intenção nobre de proteger e cuidar, ficam contando os dias até finalmente poderem começar a relaxar os cabelos das filhas. E assim, ao invés de aprender a nos amarmos e aceitarmos como somos, acabamos por internalizar a idéia de que nosso cabelo é "ruim" e que precisa ser domado. Como se isso já não fosse suficientemente triste, constatei que muitos daqueles jovens negros consideram as palavras "negro" e "preto" xingamentos. Que triste crescer em uma sociedade que te ensina a rejeitar até mesmo os termos que definem sua identidade.
  1. A negação do problema
Uma das formas mais maquiavélicas de garantir a perpetuação do racismo é negar que ele existe. Esta é uma estratégia cruel porque cega toda a sociedade para o problema e torna o seu combate tarefa impossível. Afinal de contas, como solucionar um problema que não existe? O mais lamentável é perceber que essa armadilha bem montada pega qualquer um, até mesmo nós, os negros. Fiquei comovida ao ouvir um menino dizer que ele sempre achou que nunca tinha sido alvo de racismo, até darem início às discussões sobre o tema em sala. A partir daí ele começou a relembrar situações do passado e pôde constatar que já tinha sido discriminado sim, inúmeras vezes.

O encontro com os educadores e jovens desse instituto foi uma experiência riquíssima em minha vida. Recebi muito carinho e tive a oportunidade de mais uma vez confirmar o quanto é importante despertar a atenção das pessoas para questões sociais e de identidade o quanto antes. É fundamental estimular as crianças desde bem cedo a se amarem e se aceitarem exatamente como são, e a nunca duvidarem de sua importância e do seu valor no mundo. Também é importante estimular o quanto antes o interesse em conhecer a própria história para melhor entender sua realidade atual. A pessoa que cresce sendo incentivada dessa forma, muito provavelmente se tornará um cidadão seguro, consciente de sua importância e sensível para as questões e os dilemas de outros seres humanos. E não é assim que se forma uma sociedade verdadeiramente igualitária?

Para saber mais sobre o instituto clique aqui. Para saber mais detalhes sobre minha visita aos jovens de lá, clique aqui e aqui.

  foto de André Pacheco:-)


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Lidando com o racismo – de outra forma

Um dia, recebi uma ligação de Lubi perguntando se eu estava com tempo. "Sim, claro. Pode falar" e ele começou a me contar uma estória longa que a princípio eu não sabia bem onde ia chegar. Contou que lá no instituto onde ele trabalha, tem uma atividade chamada "Cinema Comentado". Nessa atividade, os jovens assistem um filme e depois discutem sobre os temas abordados. O filme escolhido pela equipe de educadores tinha sido "Escritores da Liberdade" (Freedom Writers) de Richard LaGravenese. Como eu até então ainda não conhecia o filme, ele prossegiu me dando um resumo do que se tratava.



O filme não é nenhuma super produção cinematográfica, mas impressiona por ser um estória surpreendente, baseada em fatos reais. Ele mostra uma professora jovem, recém-formada e bastante idealista, que vai trabalhar em uma escola multicultural na Califórnia em uma época (1992) em que os Estados Unidos estavam fervendo com conflitos raciais. Os alunos de sua turma, são (em sua grande maioria) adolescentes em situação de risco que só concordam um com os outros em duas coisas: primeiro, que todos os outros são inimigos e segundo que a escola é uma merda. Nesse cenário pra lá de hostil pra qualquer processo educacional, ela consegue ajudar esses jovens a mudar de atitude a ponto de virarem escritores.



Não queria mais contar tanto sobre o filme, porque acho que vocês deveriam assistir. É fantástico e inesquecível. É um desses que antes de começar a ver, a gente tem de ter certeza de que se tem muuuuuito lenço de papel por perto. Mas pra que eu possa explicar como essa experiência foi especial pra mim, tenho de contar um pouquinho mais sobre a história do filme, então quem não quiser ter o fator surpresa estragado, pare de ler agora . O que vem a seguir são spoilers.


Os jovens, no filme, são estimulados a ler um livro cuja história se passa bem distante da realidade deles, tanto no tempo, quanto geograficamente falando. No entanto, por também se tratar de uma história verídica, ela de certa forma se relaciona muito com a deles. Eles,  então escrevem cartas para uma personagem fundamental da estória e conseguem fazer com que sejam recebidas e lidas. Como se isso não fosse o bastante, conseguem trazê-la para uma conversa com eles.


Lubis me explicava tudo isso ao telefone e eu só no "ahãn", "sério?" "nossa" "que bacana" sem compreender direito onde ele queria chegar. Até que ele finalmente chega: "Então, nós levamos seu texto "Lidando com o racismo" pra ler e debater com os meninos lá no instituto". Isso gerou GEROU uma série de discussões sobre o tema e aí surgiu a idéia de replicar com eles o ocorrido no filme. 

O que aconteceu depois foi simplesmente inacreditável.
 

Recebi mais ou menos 50 cartas à moda antiga, escritas com caneta e papel, com direito a envelopinhos coloridos, adesivinhos, coraçõeszinhos e floreszinhas desenhadas. Me emocionei. Isso é raro de se ver hoje em dia.
Como se isso já não fosse honra bastante, fui convidada a ir lá, conversar com eles. E o que aconteceu naquele dia, foi muito tocante. Tanto que vou precisar de mais um post pra contar pra vocês tudo que me marcou naquele dia.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Instituto João Carlos Paes Mendonça

Eu tenho a sorte de ser muito amiga de um cara chamado Eduardo Lubisco. Lubi, como ele é carinhosamente conhecido por muitos, além de professor de inglês, é um educador fora de série. Por ser uma pessoa extremanente sensível e preocupada com as questões sociais de nosso tempo, ele está sempre engajado em alguma causa e contribuindo de sua forma, para melhorar o mundo a seu redor. Sabe quando a gente diz assim: "as pessoas deveriam falar menos e agir mais"? Pois é, ele é uma dessas pessoas que agem.

Há mais ou menos dois anos ele trabalha no Instituto JCPM. Até bem recentemente, eu não fazia a menor idéia que esse projeto existia. Aposto que muitos de vocês também não, né? Deixa eu contar do que se trata porque é uma dessas coisas que vale a pena conhecer. O grupo JCPM (responsável por empreendimentos imobiliários e shopping centers espalhados por todo o Brasil) mantém um instituto de compromisso social em áreas carentes próximas a seus empreendimentos em todas as cidades onde se estabelecem. Aqui em Salvador, por exemplo, o Instituto JCPM funciona no Shopping Salvador e atende jovens entre 16 e 24 anos, que sejam moradores ou que frequentem ou tenham frequentado escola pública nos bairros de Pernambués e Saramandaia.

Lá nesse instituto, eles tem aulas de matemática, português, inglês e informática além de treinamento e auxílio para ingressar no mercado de trabalho. Dia 19 de novembro eu estive lá pela primeira vez e foi um dia que vai ficar pra sempre marcado em minha memória e meu coração. Querem saber por quê? Aguardem o próximo post...

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Meu mundo imperfeito

Virei fã de Elizabeth Gilbert assim que li Comer, Rezar e Amar. Tanto que não hesitei em clicar "curtir" em sua página do Facebook, apesar de achar que esse negócio de seguir celebridades é uma das maiores babaquices do universo. Recentemente Liz Gilbert postou uma coisa em sua página que me tocou profundamente. É um texto que fala do amor incondicional da escritora Courtney A. Walsh.

O texto dela é uma cartinha endereçada a nós humanos que nos estimula a esquecer essa coisa de amor incondicional porque o que a gente precisa mesmo é de amor pessoal, amor universal que é suficiente e dispensa complementos. Ainda segundo ela, a beleza desse amor está extamente em ser bagunçado, imperfeito, cheio de tentativas, erros e acertos. E ela não tem toda razão?

Eu vou ainda mais além. Não é só no amor que a gente precisa aprender a abraçar as imperfeições e sim em todos os aspectos de nossa experiência humana. Isso não é uma apologia aos maus hábitos e aos defeitos que nos paralisam e impedem de crescer como seres humanos. É só que faz bem tentar ser mais normal e menos perfeitinho. É bom ser um ser humano mais completo, cheio de qualidades e defeitos.

É uma pena que hoje em dia muita gente ache que a vida tenha de ser levada como se vivessem em um mundo de faz de contas. Num lugar onde tudo na vida só pode ser bonito, chique, elegante e digno de ser fotografado pra depois ser compartilhado em redes sociais, não há espaço pra entrar em contato com nossa imperfeição. E no final das contas ela é uma grande mestra nas nossas vidas. Se a gente não consegue assumir as próprias imperfeições qual seria a alternativa? Tentar ser super humano? Infalível? Deus? É muito pesado!
"Ninguém é perfeito". Acho que a gente não reflete realmente sobre o que isso significa quando repete essa frase por aí. Mas ela é um lembrete importante. Se ninguém é perfeito, porque que a gente tem mania de ficar querendo que o outro seja? Por que a gente tem tanto medo das nossas imperfeições? Hoje estou chata e bateu a preguiça de escrever mais. Mas minha chatice e preguiça são bem vindas. Elas são parte de mim e portanto, bem aceitas também.
P.S. Essa música do Pato Fu é a perfeita trilha pra isso aqui. A qualidade do video está bem imperfeita, igual ao post. 
 
Video de Rafael Amorim

Mas pra quem tem o defeito de não aceitar bem o imperfeito, aqui neste link dá pra ouvir a música direitinho e ainda acompanhar a letra.

 

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Desrespeito com máscara de admiração



A primeiríssima vez que fui a Bremen, na Alemanha, foi em 1999. Cheguei meio cabreira, assustada, com medo de racismo e das tantas estórias de horror que eu ouvia de estrangeiros na Europa e fui surpreendida com a abertura e tranquilidade com as quais eu fui recebida. E essa forma de me acolher permaneceu por muito tempo, tanto que demorou bastante até eu começar a notar um  monstro feio mostrando suas garras.


Antes de eu contar como isso aconteceu, deixa eu explicar uma coisa: apesar da Alemanha ser um país pequeno se comparada ao Brasil, sua diversidade cultural também é imensa. As diversas regiões tem geografia, costumes, culinária (e cervejas) diferentes e as pessoas apreciam essa diferença. Eles só dizem que são alemães quando não tem jeito, mas estufam o peito com orgulho ao dizer que são de determinada cidade ou região. 


Tendo esclarecido isso, acrescento que o que eu vou contar aqui tem muito a ver com o que se vive no norte da Alemanha. Pode ser bem diferente em outras regiões. Mas voltando a 1999, Bremen me tratou muito bem. Fui recebida por pessoas sorridentes e interessadas em  saber como eu pensava, como era minha cidade, minha vida, as comidas no Brasil, como eu me sentia na Alemanha. No início era como se eu fosse uma espécie de celebridade. Era o centro das atenções em qualquer festa. Nas rodinhas de apresenção em eventos, se eu não tomasse cuidado, era a única a falar porque todos queriam me ouvir, saber de mim. Tendo sido criada como filha única mimadíssima, adorava aquilo tudo. Fiquei ainda mais comunicativa, fiz um monte de amigos e tinha certeza que tinha encontrado o paraíso mundial da tolerância e boa convivência entre as pessoas. 


Mas o tempo foi passando. Minha vida foi ficando mais normal, tomando cara de vida de cidadã e menos de turista recém-chegada. E com essa mudança de rotina comecei a perceber que minha popularidade não era assim somente linda e maravilhosa. Existia uma coisa meio estranha naquela atenção toda que recebia, eu só não conseguia saber exatamente o quê. 


Comecei a perceber que as pessoas se interesavam muito pelo meu cabelo. Achavam lindo, mas sempre queriam saber se era de verdade (?), se dava trabalho de cuidar, que produtos eu usava. Perguntavam se podiam pegar. Quando se tratava de pessoas com as quais eu tinha mais contato, pessoas mais ou menos próximas, eu muitas vezes dizia que sim e aí elas se espantavam e comentavam que a textura de meu cabelo não correspondia com o que elas estavam esperando. E os elogios não paravam. A impressão que eu tinha é que sempre demorava um pouquinho demais pra eu conseguir mudar o assunto da conversa depois que o tema caia em meu cabelo. Ou em minha pessoa de forma geral. Isso começou a fazer com que eu parasse de apreciar aquela atenção toda. Tem dias que a gente só quer entrar e sair de um lugar, mas comigo parecia que era impossível. Comecei a me sentir, sei lá...super exposta, invadida.


Queria muito entender porque a cordialidade das pessoas em algumas situações de repente começava a me incomodar. Será que eu estava pirando? Precisava entender porque eu estava me sentindo assim, até que um estranho me ofereceu a última peça que faltava pro meu quebra-cabeças. Esse estranho, que esperava a vez dele depois de mim e meu marido em uma fila de supermercado, me lança a seguinte pergunta depois de me ver sorrindo „Ei, os seus dentes são de verdade?“ Fiquei olhando pro tal homem com cara de interrogação. Meu marido não se conteve e foi mais direto querendo logo saber que tipo de comentário era aquele. O rapaz explica que seria um elogio e naquele exato momento percebo que na Alemanha muitas vezes é como se eu fosse um animal exótico.


Tudo chama atenção, tudo desperta a curiosidade e as pessoas estão constantemente analisando tudo. Meus dentes, meu cabelo, minha pele, meu sotaque, meu intelecto, minha forma de andar, meu corpo inteiro. Ficam na expectativa pra ver como eu vou me comportar,  se e como vou dançar, em que idioma me comunico com meu marido. Como se não bastasse, sentem a necessidade de comentar todas as coisas que observam sobre mim, sem fazer uso de qualquer filtro que seja e se decepcionam se minhas respostas ou comportamentos não correspondem ao que esperam. 


Comecei a me cansar de despertar sempre o mesmo assunto da conversa. Passei a recusar certos convites por perceber que minha presença serviria de troféu pra consciência de quem me convidou. Era como se eu estivesse ali somente para representar a cota afro descendente e estrangeira em um grupo que nunca se incomodou em ser maioria e nunca prestou atenção pro fato de que no mundo existem pessoas diferentes delas, que podem ter vidas bem mais complicadas que as suas.


É difícil a mulher negra (ou brasileira de qualquer cor) escapar dessa super exposição na Alemanha. Confesso que já me deu vontade de sair de burca. Mas sabe de uma coisa? Quem tem de se esconder não sou eu. E quem tem de ser exposta é essa forma de pensar estigmatizante. Por isso resolvi pagar com a mesma moeda. Comecei a criar o hábito de devolver os „elogios“ sem noção com a mesma simpatia, insistência e falta de lógica. Os resultados são surpreeendentes. Pessoas desacostumadas a serem alvo constante das atenções sem noção, mudam de assunto, acham estranho, querem saber exatamente porque o „elogio“. Percebo pelas reações que tenho razão de me sentir ofendida com certos comentários disfarçados de elogio que me objetificam e super expõem. 


É interessante ver como as pessoas reagem sensíveis quando o jogo vira. Na Bahia, a gente costuma dizer „pimenta nos olhos dos outros é refresco“. Para os adeptos da intolerância, ultrapassagem de limites, invasão do espaço alheio, super exposição e objetificação dos outros é  elogio ou admiração.
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Para As Blogueiras Negras no dia 31 de Outubro de 2013

sábado, 21 de setembro de 2013

Necessidades Normais

Há dez anos minha mãe foi diagnosticada com Parkinson e com isso passou a fazer parte dos quase 14,5 % dos brasileiros que tem necessidades especiais. Fazer parte desse grupo não é nada fácil. Exige paciência, tolerância, grana e muito poder de se adaptar. Mas nem tudo é só triste e negativo.Ter algum tipo de deficiência oferece também inúmeras chances de reflexão e crescimento emocional e espiritual tanto para a pessoa, quanto para seus familiares. Uma coisa muito difícil, no entanto é ver como além do círculo familiar e dos amigos, muitas vezes rola uma falta de jeito das pessoas ao lidar com pessoas com essas necessidades.

Isso fica bem claro, por exemplo, quando saio com minha mãe por aí e vejo gente se impacientando quando ela está na fila abrindo a bolsa pra pegar o dinheiro pra pagar algo. Nessas situações, chovem perguntas e sugestões do tipo "Ajude ela!", "Abra a bolsa dela!" "Você não sabe a senha dela, não? Digite aí pra ela!" "Pra que você trouxe ela?" Nem sempre dá pra responder tudo isso na hora, por isso eu vou tentar responder aqui.

Vou começar pelo mais óbvio. Existem tipos diferentes de necessidades especiais e as formas dxs cuidadores ajudarem essas pessoas devem ser compatíveis com o tipo de dificuldades que elas enfrentam. A minha mãe, por exemplo, tem dificuldades motoras, mas seu raciocínio continua em cima, ou seja, não tem porque eu atropelar seu poder de se expressar e decidir nada por ela. Ela pode portanto, decidir se e quando quer ajuda e solicitar se preciso.

Muitas vezes sem querer e cheios de boas intenções, a gente acaba infantilizando e coisificando pessoas com necessidades especiais. Como você se sentiria se alguém metesse a mão na sua bolsa e pegasse seu dinheiro? Se alguém, mesmo que fosse de sua família, tomasse a sua frente na hora de pagar e digitasse sua senha na maquininha? Se do nada, alguém pegasse em qualquer parte do seu corpo? Acho que todo mundo concorda que não se faz nada disso com uma pessoa que não viva com nenhum tipo de deficiência por pura questão de bom senso e respeito ao espaço pessoal do outro. Porque não estender isso a quem tem necessidades especiais? Então eu pergunto se a pessoa quer que eu ajude antes de ajudar, pergunto se eu posso pegar nela ou nas coisas dela antes de pegar e se a pessoa diz "não" eu repeito. Acho que isso responde porque em algumas situações eu não ajudo, não abro a bolsa ou digito a senha da minha mãe.

A outra pergunta que me fazem muito, "porque você trouxe ela?" tem muito a ver como o que eu acabei de explicar também, mas vai além. Pessoas com necessidades especiais não devem ficar trancadas em casa sentadas/deitadas na frente da TV, inertes como se fossem parte do mobiliário da casa. Se elas podem de alguma forma se locomover, devem fazê-lo, se podem cuidar de si mesmas, resolver suas coisas, idem. Arrancar todas as tarefas e responsabilidades das mãos dessas pessoas, ao invés de ajudar até atrapalha.Todo mundo gosta de se sentir no controle da própria vida, não é mesmo? Isso sem contar que esconder certas pessoas em casa porque elas não correspondem ao padrão que todo mundo gosta de ver, é coisa da era medieval e do nazismo. Minha mãe gosta de sair, tem dificuldade de locomoção, é adulta e tem contas a pagar. Por isso eu a levo mesmo e vou continuar levando enquanto ela puder se mexer e quiser ir.

Hoje é Dia Nacional da Luta das Pessoas com Deficiência. Vamos aproveitar essa data para refletir sobre a forma como tratamos essas pessoas. A inclusão delas na sociedade passa por, mas vai muito mais além que construir rampas de acesso a transporte e locais públicos. É também (e talvéz em primeiro lugar) uma questão de passar aceitar que essas pessoas, assim como todos nós, querem ser tratadas com respeito, tem direito e querem administrar as próprias vidas quando possível e com suas habilidades variáveis, conseguem fazer algumas coisas e não conseguem ou tem dificuldade de fazer outras. E o que é isso senão absolutamente normal?


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Efeito dominó da educação

Semana passada eu declarei aqui meu amor por minha cidade e revelei o quanto tenho estado triste com as cenas de descaso que venho encontrando por aí. Esta semana vou falar de outra coisa negativa que tem chamado minha atenção no meu retorno à Salvador. A crescente falta de educação do soteropolitano.

Antes de eu começar, deixa eu esclarecer uma coisa. Pra quem ainda não sabe, eu vou repetir algo que não canso de dizer: Eu amo Salvador. Uma cidade não é composta apenas de suas belezas naturais e arquitetônicas. Boa parte do que faz uma cidade ser o que é, são seus habitantes, então eu adoro meus conterrâneos também. Nós soteropolitanos, temos um jeito de falar gostoso, somos muito engraçados, muitas vezes até sem querer. Somos barulhentos, criativos, cheios de charme e cheios de vida. Somos carinhosos e temos formas bem peculiares de demonstrar nosso afeto e senso de humor através de nosso dialeto. Enfim, o soteropolitano é show e eu adoro fazer parte desse grupo. O que eu não gosto é de perceber que nossas boas qualidades tem ficado cada vez mais guardadinhas num cantinho bem secreto e nosso lado sombra anda a solta pela cidade.

Tenho ficado chocada com as cenas de mais pura rudeza com as quais tenho me deparado por Salvador. Outro dia fui ao banco com minha mãe, que tem necessidades especiais. A fila preferencial estava longa, mas tinha cadeiras suficientes para todos. Quer dizer, teria se uma senhora não estivesse sentada em duas cadeiras. Infelizmente idade avançada não isenta a pessoa da falta de educação e a tal senhora não só se recusou a se sentar em uma cadeira apenas, como começou uma briga com quem questionou sua atitude.

Tinha ido em uma loja que ficava em uma rua sem saída. Quem estaciona na frente dessa loja tem de sair de ré, porque a rua é apertada e não há espaço suficiente para fazer manobras. Até aí tudo bem, nessa rua só tem essa loja mesmo e quem vai lá sabe disso. O único problema é quando o cara do carro da frente se recusa a entender que para ele sair mais rápido, o mais lógico é esperar que o carro que está atrás dele saia primeiro. Estavamos todos lá, uma fila de carros, tentando sair ordeiramente, respeitando o princípio primeiro o que está mais próximo da saída e assim sucessivamente, quando o apressadinho da minha frente, decide que a necessidade dele de sair daquele lugar é maior do que a todas as outras pessoas e vai saindo simultaneamente, criando assim uma fila dupla apertadíssima e inúmeras situações de susto, raiva e aperto pros outros motoristas. Fiquei sem palavras, ao que minha mãe me relembra, "Melhor ficar sem palavras mesmo. Hoje em dia as pessoas sacam armas e atiram nas outras por qualquer desentendimentozinho no trânsito". Lamentável, mas verdade.

Faz três semanas que eu estou de volta e nesse pouquíssimo tempo já presenciei dezenas de situações de indelicadeza que fizeram meus cabelos arrepiarem. É um festival de pessoas jogando latinha de cerveja pela janela do carro em movimento, correndo com o carrinho de supermercado cortando pessoas e atropelando quem vem pela frente pra chegar antes na fila, se aproveitando que alguém está segurando a porta da loja aberta e entrando rapidinho sem nem olhar pra cara da pessoa que segurou a porta ou dizer um obrigado. A lista da falta de consideração com o próximo é imensa e me enche de tristeza e vergonha alheia. Aliás, nem sei se posso chamar de vergonha alheia, já que eu faço parte desta cidade.

Resolvi me tornar uma pessoa extremamente atenta. Estou fazendo questão de ser ainda mais cordial, paciente e sensível no meu trato com as pessoas que encontro por aí, na esperança de que minha atitude crie uma espécie de efeito dominó e talvéz quem sabe um dia, uma mudança de atitude nessa cidade.

Mas aí deve ter gente que vai pensar "Quem ela pensa que é pra achar que vai mudar uma cidade?" Né bem por aí, não viu galera. Eu sei que eu sou apenas uma pessoa bem normal. Mas é que eu acredito que todas nós pessoas normais temos o poder de mudar o mundo de pouquinho em pouquinho em pequenos gestos nada fora do comum. O que eu vou dizer agora é bem cliché, mas como a gente tende a esquecer não custa nada repetir. Se eu conseguir ser gentil com uma pessoa que eu encontrar no meu dia, pode ser que essa pessoa trate o próximo que encontrar da mesma forma, afinal gentileza é bom e todo mundo gosta não é mesmo? Imagine aí: eu sou gentil com você, que é gentil com seu vizinho, que é gentil com a vendedora da loja e assim por diante até que essa onda de gentileza se espalhe pela cidade inteira. Impossível? Né nada! eu começo daqui, você começa daí e a gente vê.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Pra quem ama Salvador

Quem me conhece sabe que eu amo minha Salvador, minha cidade. Não é amor cego. É amor consciente mesmo. Eu a conheço bem e sei de suas qualidades e seus defeitos. Sou apaixonada por minha cidade e ainda consigo me emocionar quando retorno à meus lugares favoritos. A descida da Contorno e o Solar do Unhão são dois entre tantos. Não canso de dizer: Salvador é linda e emocionante.

Mas nem sempre as emoções que minha cidade do coração me proporcionam são do bem. Infelizmente muitas vezes ao chegar à Salvador, ao invés de ser lembrada das inúmeras histórias que me fazem rir e sorrir neste lugar, o que eu vejo são cenas tristes que deixam claro o quanto esta cidade está abandonada, entregue à própria sorte e porque não dizer, mal amada mesmo.

Ao andar pela cidade, somente uma palavra me vem à mente: abandono. Salvador está abandonada, mal cuidada, esquecida. São inúmeras praças que ninguém frequenta, parques dominados por assaltantes e usuários de crack. Tem muitas ruas desertas, sem iluminação. Muitas calçadas quebradas e pistas esburacadas. A cidade é cheia de beleza mal aproveitada, desperdiçada. A orla é um bom exemplo disso. Nunca vi tanto potencial tão mal aproveitado. A orla dos meus sonhos teria boa iluminação e por isso seria bem movimentada de dia e de noite. Teria a melhor cena noturna de Salvador, com barzinhos e boates para todos os gostos. Teria um calçadão amplo e bem cuidado. Teria policiamento, salva-vidas e sinalização em toda sua extensão.

Essa seria a orla de meus sonhos. Mas infelizmente a realidade está bem distante disso. Hoje pela manhã fui fazer uma caminhada por lá e fiquei triste ao ver a areia da praia cheia de lixo, os urubus fazendo a festa. À noite nem sei, porque já que tenho muito o que perder, não ando dando bobeira por lá. As imagens que vejo na cidade, não só na orla, me enchem de vergonha, às vezes me dão até vontade de chorar, não só de tristeza, de frustração também.

Entra prefeito e sai prefeito e a cidade fica cada vez mais triste. Mas eu sei que o problema da falta de cuidado e abandono de Salvador não é só dos prefeitos. É nosso também. E os soteropolitanos, na minha opinião tem se mostrado péssimos cidadãos. A praia que eu vi cheia de lixo estava assim não só por falta de coleta adequada, como também porque alguém jogou aquele lixo em algum lugar que não devia. A falta de amor dos soteropolitanos com Salvador não para por aí. Além de emporcalhar a cidade, a pessoas picham os monumentos, roubam as estátuas e as lâmpadas dos locais públicos, andam com seus cachorros nas praças e não recolhem as fezes dos bichos e por aí vai.

A conservação dos espaços públicos segue uma lógica interessante. Quanto menos conservado um local for, menos comprometidas as pessoas se sentem com ele. E quanto menor o compromentimento das pessoas com um lugar, maior a predisposição delas para quebrar, destruir e nem se importarem se outra pessoa fizer o mesmo. É um ciclo horroso que foi inclusive testado e comprovado por diversos cientistas. (Zimbardo 1969 e Wilson e Kelling, 1982)

Ciclos como esses, no entanto, podem e devem ser quebrados ou melhor ainda, substituídos por outros mais positivos. Pode-se começar pequeno, devagarzinho, simplesmente não jogando lixo por aí. Quer jogar alguma coisa fora? Procure uma lixeira, ou guarde o papel na bolsa até achar uma. Eu por exemplo ando com um saquinho na bolsa. Cansou de carregar lixo consigo? Vamos exigir da prefeitura mais lixeiras pelas cidade, coletas mais eficientes, explicações sobre como estão investindo o dinheiro de nossos impostos. Mas só dá pra fazer isso se a gente fizer nossa parte, né? Isso é cuidar da nossa casa, de nossa cidade. Você gosta de Salvador? Então demonstre.

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P.S. Em 1969 o time de pesquisa do professor Phillip G. Zimbardo da universidade de Standford nos Estados Unidos, abandonou dois automóveis idênticos e em bom estado em duas cidades com populações bem diferentes. Um foi largado no Bronx em Nova Iorque e o outro em Palo Alto na California. Em questão de horas depois de ser abandonado, o carro do Bronx ja começou a ser saqueado. Durante semanas o carro de Palo Alto permaneceu intacto. 

Teóricos conservadores se deleitaram porque puderam dizer com base científica que quanto mais pobre a região, maior a predisposição ao vandalismo. Só que aí professor Zimbardo foi lá e deu umas marretadas no carro de Palo Alto. O resultado foi que no mesmo dia pessoas (brancas de classe média, diga-se de passagem) começaram a fazer o mesmo que o pessoal do Bronx. Este experimento foi repetido por outros psicólogos, sociólogos e criminalistas, todos mostrando resultados semelhantes. Até que os sociólogos James Q. Wilson e e George L. Kelling lançaram a Teoria das Janelas Quebradas em 1982 que resumidamente diz que quanto mais descuidado um local for, maior a probabilidade da ação de vândalos. Quando o descuido de uma região acaba "expulsando" o cidadão comum, com o tempo ele passa a ser ocupado por desordeiros. Muito interessante, vale à pena ler.:

KELLING, George; COLES, Catherine M. Fixing Broken Windows: Restoring Order and Reducing Crime in Our Communities. New York: Free Press, 2003.

Zimbardo, P. G., (1969). The human choice: Individuation, reason, and order versus deindividuation, impulse, and chaos. Nebraska Symposium on Motivation, 17, 237-307.


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Sound of da Police - O som da polícia

Tem um blog alemão de humor e variedade que eu adoro futucar nas horas vagas. Ele junta vários videos interessantes e engraçados que pessoas do mundo todo mandam pra ele. Os comentários são ótimos e boa parte dos vídeos também. Essa semana encontrei um (enviado por Theo bat schandorff), que primeiro me fez sorrir e depois me colocou pra pensar muito. Assistam:


Pra quem não entendeu nada, se trata do festival Roskilde na Dinamarca, e o que vocês podem ver é uma patrulha policial. A "viatura" é uma espécie de boombox gigante, empurrada por uma pessoa e puxada por outra, provavelmente participantes do festival. Em cima do carro uma reporter pega carona com seu instrumento de trabalho. Ao lado dela, dois policiais sorridentes vão curtindo o som de KRS One – Sound of da Police.

Nos comentários abaixo do post no blog, se lê pessoas confirmando que o clima lá nesse festival é assim mesmo. Todo mundo relaxado e engraçadinho inclusive a polícia. Conversando com uma professora dinamarquesa lá da escola onde trabalho, ela me disse que a polícia deles tem fama de ser assim mesmo: leve, super tranquila e muito, mas muito educada mesmo. Sei que é covardia querer comparar Dinamarca com Brasil, mas não pude deixar de pensar em nossa polícia e como tudo é diferente por lá.

Eu sei que existem vários fatores que fazem a polícia brasiliera ser do jeito que é. Sempre tem. História, péssimos salários, formação ruim, falta de investimento em especializações, péssimo treinamento, falta de incentivo e reconhecimento dentro da corporação, condições de trabalho precárias e extremamente perigosas e a lista não para. Eu sei que não é fácil ser policial no Brasil. Mas também sei que não é fácil ser cidadã/o e depender dessa instituição. Quando vejo a forma como nossa polícia tem lidado com manifestantes e a imprensa, e principalmente como lida com a população negra de baixa renda, fico assustada. Não queria pensar assim, mas na verdade a máxima que diz "não sei se tenho mais medo de ladrão ou de polícia" é a mais pura verdade.

Assisto novamente o video desse festival dinamarquês e fico pensado em como a imagem é surreal. Policiais felizes, provavelmente bem treinados e ganhando bem, podendo exercer sua profissão sem medo, integrados no ambiente no qual tem de trabalhar, fazendo seu trabalho sem assustar ninguém. O pessoal no video parece estar curtindo a piada e não morrendo de receio de ser aleiatoriamente vítima de violência policial. A ironia da cena vem do fato que a letra da música que eles estão ouvindo tão despreocupados, lembra mais a realidade de outros cantos do mundo do que a deles próprios. KRS One canta sobre os Estados Unidos, mas bem que poderia estar cantando sobre o Brasil.

Na música o rapper compara o policial com um "overseer", um feitor "e faz uma exigência: "First show a little respect, change your behavior/ Change your attitude, change your plan" que traduzindo fica assim: demonstre um pouco de respeito, mude seu comportamento, mude sua atitude, mude seu plano. E é verdade, né? Nem nos Estados Unidos, nem no Brasil, a comunidade negra carente pode contar com proteção policial. Pelo contrário, este grupo social é vítima constante de constragimentos e humilhação ao lidar com a polícia, normalmente já de cara sendo tratados como suspeitos e eternas vítimas do racismo institucionalizado do Brasil. A sociedade, por sua vez, é conivente com esse quadro, quando prefere ignorar que a grande maioria das vítimas de mortes violentas no país tem um perfil mais do que claro: morador de periferia, jovem e negro.

Me dá medo quando percebo que além de não se indignar com essa situação, nossa sociedade ainda começa a defender medidas drásticas como a diminuição da idade penal. Se isso algum dia isso virar realidade, o perfil dos alvos favoritos da polícia mudaria de jovens negros entre 19 e 24 anos para ainda mais jovens e isso é assustador. Minha tendência é achar que a solução para quase todos os problemas sociais do planeta é educação. Uma sociedade bem educada conhece bem seus direitos e deveres e por isso sabe acompanhar o trabalho de seus representantes e quando necessário exigir mudanças. Uma sociedade bem educada também sabe que é importante estar atento e envolvido em diversas questões sociais e não somente com aquelas que tem a ver com o próprio umbigo.Uma força policial bem educada, por sua vez, conhece bem a população a qual tem de servir, seus problemas e a melhor forma de lidar com eles. Uma polícia bem educada sabe que seu lugar não é acima da lei e sabe que eles não são pagos pra coagir ninguém.

Educação faz as pessoas mais críticas e menos dispostas a seguir ordens cegamente. Mais educação significa menos vítimas de qualquer coisa, seja de crimes violentos, opressão ou destino. Com educação o ser humano fica mais firme pra fazer as próprias escolhas e aceitar as consequências delas e discursões se tornam hábito, atividade corriqueira.

Não dá mais pra evitar discutir sobre a polícia brasileira. Já passou da hora de toda sua estrutura, treinamento, atitude e filosofia serem colocadas em questão. Mas enquanto a gente preferir acreditar que cadeia é melhor que escola e que as mortes da periferia não tem nada a ver com a gente, as frases que eu retirei do rap de KRS One (e esse rap é de 1993), infelizmente sempre corresponderão à nossa (vergonhosa) realidade.

"I know this for a fact, you don't like how I act
Eu sei que isso é um fato, você não gosta de como eu ajo
The overseer rode around the plantation
O feitor cavalgava pela plantação
The officer is off patroling all the nation
O policial tá por aí patrulhando a nação
The overseer could stop you what you're doing
O feitor podia parar o que você está fazendo
if you fought back, the overseer had the right to kill
Se você se defendesse, o feitor tinha o direito de matar
The officer has the right to arrest
O policial tem o direito de prender
And if you fight back they put a hole in your chest!
E se você se defender eles metem bala em seu peito
They both ride horses
Os dois andam a cavalo
After 400 years, I've got no choices!
400 anos mais tarde eu não tenho escolha!
My grandfather had to deal with the cops
Meu avô tinha ade lidar com policiais
My great-grandfather dealt with the cops
Meu bisavô tinha de lidar com policiais
And then my great, great, great, great... when it's gonna stop?!
O meu tataravô ... quando isso vai acabar?

Eu me pergunto o mesmo. Quando esse ciclo doente vai parar? Quando as pessoas começarão a apreciar o componente africano de nossa cultura em qualquer época do ano e não somente no carnaval? Quando vão parar de ignorar que a desigualdade social no Brasil está intimamente ligada com o racismo e parar de ficar investindo tanta energia em negar que ele existe?Quando vamos nos indignar com essa polícia repressora, despreparada e assassina da juventude negra? Quando vamos finalmente entender que não existe desenvolvimento verdadeiro enquanto existirem grupos que são deixados pra trás? Quando?
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Post para As Blogueiras Negras. Postado dia 02 de Agosto de 2013.

sábado, 27 de julho de 2013

Happy Birthday

Em 1980 Steve Wonder lançou o que acabaria se tornando a minha música de aniversário favorita. Quando penso no aniversário de alguma pessoa querida ou no meu próprio, é sempre essa musica que me vem à cabeça. Quando ela foi lançada eu era uma pequena peruinha de quatro anos de idade e por isso não tinha noção que além de linda, essa música tem um significado muito especial. Hoje em dia, não só gosto da música, como me arrepio toda vez que escuto.

O aniversariante da música é Martin Luther King Jr., líder religioso e do movimento por igualdade racial nos Estados Unidos. Ele estava à frente da Marcha à Washington onde fez o celebrado discurso (I Have a Dream) que anos depois viraria mantra das aspirações sociais no mundo inteiro. Em 1968 ele foi assassinado e desde então começaram a surgir diversas campanhas pedindo um dia dedicado a sua homenagem.

Não me perguntem por que, mas no início os americanos resistiam em aceitar o feriado com o nome de Martin Luther King's Day. Aliás eu sei porque, mas deixa quieto por enquanto que neste post eu só queria mesmo falar de uma música de aniversário que eu adoro. O fato é que durante anos, alguns estados comemoravam essa data apenas com o nome de Civil Rights Day. Várias campanhas prosseguiram tentando convencer as pessoas a adotar o feriado com o nome que ele tem hoje - dia de Martin Luther King -  e essa música de Steve Wonder faz parte dessa campanha. Em 2000, finalmente o feriado passou a ser comemorado em todo os Estados Unidos com o nome do homenageado.