Pegando
o bonde do texto anterior, tive de compartilhar essa carta que
originalmente apareceu nas Blogueiras Negras.
Tania,
A primeira coisa a ser dita é que nada nos preparou para escrever
essa carta. Mesmo assim, em nome de mães e pais negros e
afrodescendentes, precisamos falar sobre um vídeo de sua
responsabilidade postado no youtube. Estou falando de Sofia, Nega do Cabelo Duro, em que uma criança com o rosto pintado de negro interpreta essa famosa marchinha que há muito tempo sabemos ser racista.
Acreditamos que a pequena Sofia seja próxima a você, talvez sua
filha, sobrinha. Ela aparece gesticulando e fazendo caretas, contrariada
enquanto usa vários pentes. Seu cabelo é apresentado como complicado,
“difícil”, “duro”. Enfim, não “desmancha nem na areia”. Somente o maior
dos pentes, o amarelo, consegue resolver o “problema”. É o “pente que te
penteia”.
Imagino também que você, como muitas pessoas, dirá que foi uma
“divertida” e “inocente” “homenagem”. Que o objetivo dessa “brincadeira”
não foi ofender mulheres (e meninas) negras e afrodescendentes. Só que
foi justamente esse o efeito de seu vídeo, e por isso decidimos
escrever, para que o preconceito contra nossa pele e nosso cabelo acabe.
Desde a colonização deste país, a pessoa negra é tratada como uma
“raça à parte”, como se não fosse incluída na humanidade, como se nossa
aparência não fosse “correta”. Como se o “normal” e desejável fosse ser
branco, de cabelos lisos. Como muitas pessoas pensaram assim ao longo
dos séculos e ainda pensam, o racismo ainda contamina profundamente a
maneira como somos mostrados na televisão, nas revistas e também na
internet.
A ideia de que ser branco é ser bonito faz com que milhões de
mulheres pretas comprem produtos de alisamento e relaxamento para que
seus cabelos percam volume, para que se sintam mais “aceitáveis” dentro
de um padrão eurocêntrico racista. Assim como ensinou Sofia, nós também
somos ensinadas que nossos cabelos são “ruins”, “difíceis de cuidar”.
Que não são bonitos e nem práticos. Isso nos destrói por dentro desde
muito cedo.
É assim que a autoestima de crianças, adolescentes e mulheres negras é
destruída. É assim que, ao invés amar quem somos e nossas origens,
aprendemos a odiar nossos corpos, nossos cabelos. É por isso que muitas
de nós tentam se parecer com aquilo que o racismo diz que é correto, que
é ser limpo, que é ter uma aparência profissional. É por isso que
muitas mães alisam os cabelos de suas filhas tão cedo.
Só que, ao longo dos anos, homens e mulheres pretas vem se unindo
para lutar contra o racismo. Trabalhamos o conceito de amor e de
manutenção de nossas características individuais, que são lindas. Não
somente entre nós, como também em nossos filhos, pois percebemos que é
muito importante que o nosso povo não aceite tamanha opressão. Que
acredite que a cor da nossa pele e a textura dos nosso cabelos não pode
interferir na maneira como as pessoas nos enxergam.
Talvez você não saiba, mas pintar o rosto para fazer imitações de
pessoas negras é racismo. É divertido para muita gente, mas não para
todo mundo. É um tipo de humor que tem aparecido com muita frequência na
televisão, infelizmente. Um dos maiores exemplo disso é a Dona Adelaide
do Zorra Total. O nome desse tipo de piada em português é Cara preta
(Black Face). Aqui você pode ler um ótimo artigo sobre o assunto, explicando com detalhes porque são terríveis.
É o tipo de piada que faz as pessoas pensarem que nós, negros, não
somos bonitos, educados e honestos. Que nós, mulheres negras, não temos
dentes, que nossos cabelos são feios. É o tipo de piada que ensina às
crianças que pessoas negras são fedidas, feias, desagradáveis. Que não é
muito bom ter amigos negros. Infelzimente, é quase sempre assim que
nós, mulheres negras, aparecemos na televisão.
São essas pequenas grandes piadas que fazem com que as pessoas se
esqueçam que nós somos humanos tanto quanto pessoas brancas. E quando as
pessoas se esquecem que nós somos humanos, elas se acostumam com o
racismo. O racismo, por sua vez, faz com que as pessoas achem normal que
nossos jovens morram cedo, que nossas crianças não tenham educação de
boa qualidade.
Precisamos dizer com toda sinceridade que estamos acostumadas com
esse tipo de piada. Mas seu vídeo é o único que vi até hoje onde uma
criança, que provavelmente não tem a menor ideia do que tudo isso
significa, faz esse tipo de coisa. Por causa disso, não somos apenas
nós, mulheres adultas, que somos motivo de riso. São nossas crianças,
nossas filhas.
Falaremos em nome de todas as mães negras e afrodescendentes cujas
filhas, infelizmente, serão chamadas de negas do cabelo duro várias
vezes ao longo da vida. Certamente um “elogio” que nenhuma mãe gostaria
de ouvir. Nós podemos, como mães e pais, combater esse racismo. Mas você
também pode Tania, ensinando que esse tipo de brincadeira nunca deveria
ser repetida.
Não conseguimos entender até agora que mensagem você tentou passar
pra Sofia. Afinal de contas, está claro que a pequena é branca apenas
pros padrões brasileiros, porque todo brasileiro se acha MUITO branco,
né? Mas na verdade, sabemos que o motivo de seu cabelo ser cacheado é
justamente o sangue africano correndo em suas veias, o que faz com que
ela seja afrodescendente.
Sinceramente? Seu vídeo é de extremo mau gosto. Estimula crianças a
desrespeitarem quem são. Afinal, por que ensinar uma criança a pintar
seu rosto de preto, que “cabelo duro” é “coisa de preto”? Por que
ensinar uma criança a ser racista? Por que não ensinar que todos os
seres humanos nascem diferentes e que justamente por isso somos
maravilhosos? Que devemos amar e respeitar quem é diferente de nós, por
que é assim que seremos respeitados?
Estamos numa era de transformação, na qual todos os seres humanos se
encaixam e devem ser respeitados. Uma época em que todos devemos nos
amar como somos, com o cabelo que temos. Ensinar o contrário põe a
perder o trabalho de séculos de luta para que seja quebrado de uma vez
por todas este estigma de que pessoas negras são “feias”, tem o cabelo
“duro”.
Pedimos, por favor, que repense sua atitude com relação a toda a
população preta, mas principalmente com uma criança “branca” que está em
formação. O racismo, desde o início dos tempos, é coisa ensinada e
assim segue seu fluxo. Crianças aprendem em casa e reproduzem na escola o
ódio ao preto, traduzido em “brincadeira de criança” para quem pratica,
mas uma quebra da autoestima pra quem sofre.
Hoje, Sofia é apenas uma criança, mas um dia vai crescer e entender.
Espero que até lá esse episódio triste seja superado. Que ela tenha a
oportunidade de viver num Brasil sem racismo e preconceitos de todo o
tipo. É o que desejamos para ela, de coração. Porque assim, desejamos
para nós mesmas e para todas as nossas crianças negras e
afrodescendentes. Agora e no futuro.
Fantastico!!!!
ResponderExcluir